Aborda-se neste breve texto o reconhecimento pelos Tribunais acerca das mudanças social e cultural ocorridas no Brasil quanto ao conceito contemporâneo das entidades familiares e a dificuldade encontrada em aplicá-lo em sua plenitude, diante da nossa Legislação que permanece desatualizada e contrárias a alguns avanços.
Em primeiro lugar, é importante avaliar que abandonamos aquela sociedade patriarcal, na qual o homem era o chefe da família e a ele cabia o poder de conduzi-la, tendo havido simultaneamente o avanço da emancipação feminina, com conquistas relevantes no aspecto profissional, com a abertura gradativa das oportunidades às mulheres, além da possibilidade da libertação da sexualidade feminina com o surgimento da pílula anticoncepcional.
Essas mudanças sociais refletiram na configuração do que entendemos como entidades familiares nos dias de hoje. Antes prevalecia o patriarcalismo, e o poder nas mãos dos homens, as crianças eram objeto de direito, as mulheres obedeciam, não eram consideradas plenamente capazes após o casamento, eram páreas da sociedade em casos de desquite, dentre outras situações de subjugação.
No entanto, hoje em dia prevalece a igualdade de direitos entre homens e mulheres na condução da sociedade conjugal, conforme dispõe o art. 226, § 5º da Constituição Federal, além do entendimento consolidado de que as famílias têm na sua base o afeto e a solidariedade.
Não faltam exemplos dessa mudança de entendimento do que se considera uma entidade familiar nos dias de hoje. Há famílias oriundas da união estável entre pessoas do mesmo gênero e de gêneros distintos, assim como casamentos entre pessoas de gêneros idênticos ou diversos, há as famílias monoparentais, formadas por um dos genitores e seus filhos, há as famílias solitárias ou unipessoais, constituídas por pessoas solteiras, viúvas, separadas, celibatárias, tendo havido o reconhecimento pelo STJ através da súmula 364, que prescreve que “o conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas.” Enfim, toda essa evolução está baseada nas mudanças sociais, seguidas pelo reconhecimento, ainda que tardio, da Constituição Federal (art. 226 e incisos), do Código Civil de 2002 e das recentes decisões dos Tribunais Superiores, que reconheceram, por exemplo, a união estável e o casamento entre pessoas do mesmo gênero.
No entanto, a nossa Legislação ainda mantém a monogamia como elemento constitutivo de qualquer entidade familiar, presente nos artigos do Código Civil que tratam do concubinato e da fidelidade recíproca.
O art. 1.727 determina que as relações eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar-se, constituem concubinato. Já, o art. 1.566, I, do mesmo diploma, determina que são deveres de ambos os cônjuges a fidelidade recíproca.
Portanto, o que se vê, atualmente, em decisões recentes que impedem o reconhecimento de famílias simultâneas e de famílias poliafetivas, é, em boa medida, a barreira existente na legislação.
Vejam que na decisão da 8ª Câmara do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, processo nº70082663261, em que foi reconhecida a simultaneidade de uma união estável e de um casamento, houve a constatação de que os companheiros conviveram durante 14 anos, moraram juntos, enquanto ele se mantinha legalmente casado, e a esposa sabia da relação dele com outra mulher.
Os Desembargadores sustentaram que se fazia necessária a “preservação do interesse de ambas as células familiares constituídas”.
Houve o posicionamento divergente do Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, cujo entendimento foi o de que “o direito de família brasileiro está baseado no princípio da monogamia, e que se não são admitidos válidos dois casamentos simultâneos, não há coerência entre a admissão de uma união estável e de um casamento, sob pena de se admitir mais direitos a essa união de fato do que ao próprio casamento”.
Essa opinião divergente segue a linha atual do STJ e do CNJ, que se baseiam na Lei, mitigando o modelo atual de entidade familiar baseada no afeto e na solidariedade. Seguem trechos do recente Julgado do STF, com repercussão geral que afastou a concomitância de duas uniões estáveis, e da decisão do CNJ sobre a impossibilidade de se lavrar Escrituras para a constituição de famílias poliafetivas.
“Em que pesem os avanços na dinâmica e na forma do tratamento dispensado aos mais matizados núcleos familiares, movidos pelo afeto, pela compreensão das diferenças, respeito mútuo, busca da felicidade e liberdade individual de cada qual dos membros, entre outros predicados, que regem inclusive os que vivem sob a égide do casamento e da união estável, subsistem em nosso ordenamento jurídico constitucional os ideais monogâmicos, para o reconhecimento do casamento e da união estável, sendo, inclusive, previsto como deveres aos cônjuges, com substrato no regime monogâmico, a exigência de fidelidade durante o pacto nupcial (art. 1.566, I, do Código Civil).”
“11 A sociedade brasileira tem a monogamia como elemento estrutural e os tribunais repelem relacionamentos que apresentam paralelismo afetivo, o que limita a autonomia da vontade das partes e veda a lavratura de escritura pública que tenha por objeto a união “poliafetiva”. 12. O fato de os declarantes afirmarem seu comprometimento uns com os outros perante o tabelião não faz surgir nova modalidade familiar e a posse da escritura pública não gera efeitos de Direito de Família para os envolvidos. 13. Pedido de providências julgado procedente.
Enfim, é preciso que haja a atualização da legislação, afastando conceitos ultrapassados como o patriarcalismo e a monogamia, no intuito de permitir os arranjos familiares que se pretendam formar ou coexistir com base no afeto, na solidariedade e na verdade, com o consequente reflexo patrimonial, cabendo à cada um, de forma particular, resolver como pretende unir-se ou manter-se unido ao outro, em busca da felicidade e da plenitude.
1 RE 1045273/SE – SERGIPE – STF. Relator(a) Min. Alexandre de Moraes.
2 Processo nº 0001459-02.2016.2.00.0000. Pedido de Providências. CNJ